Universidade Federal da Santa Catarina

Departamento de Informática e Estatística

Informática Aplicada a Educação

Orlando Fonseca Silva - nick@eps.ufsc.br

Texto: A convivencialidade

Autor: Ivan Illich

O texto é de 1973 e discute a seguinte hipótese: "existem características técnicas nos meios de produção que tornam impossível o seu controle num processo político. Só uma sociedade que aceite a necessidade de escolher um teto comum a certas dimensões técnicas para os seus meios de produção tem viabilidades políticas".

Para o autor, o monopólio do modo industrial de produção, estabelece o domínio não só sobre o os recursos e a instrumentalização, mas também sobre a imaginação e os desejos de um número crescente de indivíduos e que, de certo modo, o próprio homem está industrializado, transformado em matéria prima elaboradora de ferramenta. Neste modo de produção existe a contínua preocupação por renovar modelos e mercadorias, o que gera uma aceleração da mudança, destruindo o recurso ao precedente como guia de ação.

Defende a necessidade de se detectar limites atribuíveis ao crescimento, seja na produção de bens ou serviços posto que a superprodução industrial de qualquer um dos dois revela efeitos secundários catastróficos, estes limiares de nocividade das ferramentas seriam detectados na medida em que estas se virassem contra o seu objetivo ou ameaçassem o homem. Para ele o reconhecimento da existência de escalas e de limites naturais permitiriam elaborar os contornos teóricos de uma sociedade que não seja hiper industrial, e definir conceitualmente outros modos de produção pós-industrial, onde limitar-se-ia o poder da ferramenta. A esta sociedade chama de convivencial, ou seja:

"Convivencial é a sociedade em que a ferramenta moderna estaria a serviço da pessoa integrada na coletividade, e não a serviço de um corpo de especialistas, aquela em que o homem controla a ferramenta e nela, se encontraria o homem austero: aquele que encontra sua alegria e o seu equilíbrio na utilização da ferramenta".

Para corroborar a necessidade de limites, o autor analisa a história da medicina moderna e identifica dois limiares por ela ultrapassados cujas conseqüências podem ser irreversíveis. O primeiro limiar ocorre quando a medicina passa a ser quantificada em termos de resultados estatísticos, sendo o alcance de seus êxitos medidos por critérios estabelecidos pelos próprios médicos e tais êxitos, no essencial, não sendo frutos de duas atividades, mas sim relacionados a por exemplo: regras de higiene, transformações do habitat e de regime alimentar para o caso da redução da morbidade e da mortalidade. Neste primeiro momento, a saúde se transformaria em produto de consumo social. O segundo limiar é ultrapassado quando a medicina, na pretensão de fabricar uma saúde melhor, passa a produzir novos tipos de doenças, que nem a técnica moderna, nem a imunidade natural, nem a cultura tradicional sabem como enfrentar, exemplificando, pela difusão do uso imoderado de drogas químicas, com o conseqüente surgimento de micróbios mais resistentes. E ainda, neste segundo limiar, a assistência preventiva ou curativa é cara e torna-se um privilégio ao qual têm direito unicamente os consumidores importantes dos serviços médicos.

Diante dos sintomas de uma crise planetária, o autor vê como origem a substituição do homem pela máquina, ou seja, o domínio do homem sobre a ferramenta substituído pelo domínio da ferramenta sobre o homem e que, a solução para crise, exige uma conversão radical, que acabe com a estrutura que regula a relação do homem com a ferramenta, para que se possa proporcionar ferramentas justas. Para ele, o homem precisa de uma ferramenta com a qual trabalhe, e não de instrumentos que trabalhem em seu lugar. Precisa de uma tecnologia que tire o melhor partido da energia e da imaginação pessoais, não de uma tecnologia que o avassale e o programe e define:

"A ferramenta justa corresponde a três exigências: é criadora de eficiência sem degradar a autonomia pessoal; não provoca escravos nem senhores; amplia o raio de ação pessoal".

Como ferramenta o autor entende uma fornecedora de objetos (bens) e dos serviços, ou todos os objetos tomados como meios para um fim, ou ainda, todos os instrumentos racionais da ação humana, assim, abrange desde uma vassoura, um carro, um televisor, até as instituições produtoras de bens como uma fábrica de pastéis, uma central elétrica ou as produtoras de serviços como a escola, os meios de comunicação e as instituições médicas. Dela o homem precisa porém, que o homem não se alimenta unicamente de bens e serviços, precisando também da liberdade para modelar os objetos que o rodeiam, para lhes dar forma ao seu gosto, para os utilizar com e para os outros. Em função deste conceito de ferramenta, a convivencialidade é a liberdade individual, realizada dentro do processo de produção, no seio de uma sociedade equipada com ferramentas eficazes.

A ferramenta é convivencial na medida em que cada um puder utilizá-la sem dificuldade, tão amiúde ou tão raramente quanto o deseje, para os fins que o próprio determine. Como exemplos, o autor aponta o telefone e os sistemas de correios.

Numa sociedade convivencial, a ciência e a tecnologia não seriam aniquiladas, a indústria e a burocracia não seriam destruídas mas sim, seria invertida a lógica das instituições industriais, onde justifica-se a produtividade pelo dogma do crescimento à custa da convivencialidade, eliminando-as como impedimentos a outros modos de produção.

"O ideal proposto pela tradição socialista não se traduzirá em realidade enquanto se não inverterem as instituições imperantes e não for substituída a instrumentação industrial por ferramentas convivenciais."

O autor saúda a crise planetária das instituições dominantes como um clarear de uma libertação revolucionária que nos emancipará das instâncias que mutilam a liberdade elementar do ser humano, que pode nos fazer chegar a um novo estado de consciência, capaz de afetar a natureza da ferramenta e a ação a seguir para que a maioria tome o controle e a sociedade seja convivencial.

Numa estrutura convivencial, os valores essenciais a serem defendidos seriam: a sobrevivência, a equidade e a autonomia criadora, diferentemente dos valores do modo de produção industrial que residem na satisfação máxima pelo maior consumo de bens e serviços. Destes valores essenciais, a sobrevivência é necessária para a equidade, mas não suficiente, e esta, na distribuição dos produtos industriais também necessária, mas não suficiente, posto que não garante em si, que uma pessoa não se transforme em prisioneira da instrumentação. A autonomia, como poder de controle sobre a energia, engloba os dois primeiros valores e define o trabalho convivencial, que têm como condição, o estabelecimento de estruturas que possibilitem essa distribuição eqüitativa da energia, e que limitaria as dimensões das ferramentas, proscrevendo os instrumentos e leis que dificultam o exercício da liberdade pessoal. Neste sentido, os bens passariam a ser definidos como a capacidade de cada pessoa para moldar a imagem do seu próprio porvir.

A transformação para uma sociedade convivencial, na visão do autor, será acompanhada de extremos sofrimentos: fome para alguns, pânico para outros mas que se justificariam diante de sofrimentos piores que a organização industrial dominante está prestes a causar. Seria resultado do idealismo dos humildes, não o produto de um decreto dos burocratas e exigiria uma renúncia geral, à superpopulação, à superabundância e ao super-poder, seja de indivíduos ou de grupos.

Ainda sobre a ferramenta, o autor considera que esta pode crescer de duas formas: para aumentar o poder do homem ou para o substituir. No primeiro caso, a pessoa conduz a sua própria existência tomando o controle e a responsabilidade, no segundo é a máquina que a conduz. Desta forma, ameaçado pela onipotência da ferramenta, a sobrevivência da espécie depende do estabelecimento de procedimentos que permitam a toda gente distinguir claramente entre estas duas maneiras de racionalizar e de utilizar a ferramenta e, com isso, incitem a exaltar a sobrevivência dentro da liberdade. Para realizar esta tarefa existem três obstáculos: a idolatria da ciência, a corrupção da linguagem cotidiana e a desvalorização dos procedimentos formais que estruturam a tomada de decisões sociais.

Para o autor, a ciência é atualmente uma agência de serviços onipresente, que produz o melhor saber, tal como a medicina produz melhor saúde. Numa sociedade que se define pelo consumo do saber, a criatividade e a imaginação são mutiladas e esta perversão fundamenta-se na crença em duas espécies de saber: o do indivíduo, inferior, e o da ciência, superior. Do ponto de vista de tomada decisões, o elemento básico é o saber objetivo da ciência, então estas decisões são concebidas como um processo impessoal e técnico, e o cidadão abdica de todo o seu poder a favor do perito, o único competente. Ao cifrar a sua fé no perito, o homem despoja-se da sua competência jurídica em primeiro lugar e política depois. Tal confiança na onipotência da ciência incita os governos e os seus administrados a embalar-se na ilusão de que serão impedidos os conflitos suscitados por uma evidente rarefação da água , do ar ou de energia, a crer cegamente no oráculo dos peritos, que prometem milagres multiplicadores e diz:

"A ciência pode iluminar as dimensões do reino do homem no cosmo, mas precisa de uma comunidade política de homens conscientes da força de sua razão, do peso de sua palavra, e da seriedade dos seus atos para escolher livremente a austeridade que lhe garantirá a vitalidade."

Quanto a linguagem, o autor vê uma degradação em todas elas, pelo fato do próprio homem estar, de certo, modo industrializado e a linguagem ser um reflexo do monopólio que o modo de produção industrial exerce sobre a percepção e a motivação. Mas, se cada qual se servir da linguagem para reivindicar o seu direito à ação social em vez de ao consumo, a linguagem transformar-se-á no meio de restituir à relação do homem com a ferramenta a sua transparência.

Quando se refere aos procedimentos formais que estruturam a tomada de decisões sociais, o autor se refere a lei e o direito, que nas suas formas atuais, estão, de maneira esmagadora, ao serviço de uma sociedade em expansão indefinida e o processo pelo qual os homens decidem quanto ao que devem fazer encontra-se atualmente subjugado pela ideologia da produtividade: é preciso produzir mais, mais saber e decisões, mais bens e serviços O corpo de leis que regulam uma sociedade industrial refletem inevitavelmente a ideologia, as características e a estrutura de classe, ao mesmo tempo que a reforçam e asseguram a sua superprodução. Independente de sua ideologia, qualquer sociedade moderna situa sempre o bem comum na ordem do mais: mais poder para as empresa e os peritos, mais consumo para o usuário.

Pensando num epílogo para a era industrial, o autor conjectura: se num futuro próximo, a humanidade não delimitar o impacto de sua instrumentalização sobre o ambiente e não puser em ação um controle eficaz de nascimentos, os nossos descendentes conhecerão o espantoso apocalipse vaticinado por muitos ecologistas e que a sociedade pode delimitar a sua sobrevivência dentro dos limites fixados e reforçados por uma ditadura burocrática, ou então reagir politicamente à ameaça, recorrendo aos processos jurídico e político.

Para ele, o crescimento irá parar por si mesmo, pois as instituições que julgam estabiliza-lo e harmoniza-lo afinando os mecanismos e os sistemas de controle, não fazem senão precipitar a mega-máquina institucional para o segundo limiar de mutação. Dentro de muito pouco tempo, a população perderá a confiança, não só nas instituições dominantes, mas também nos gestores da crise. O poder que as instituições têm para definir os valores, desvanecer-se-á repentinamente quando se reconhecer o seu caráter ilusório, e ainda, um acontecimento imprevisível e provavelmente menor, servirá de detonador da crise e porá em evidência a contradição estrutural onde tenta-se promover uma era ao mesmo tempo hiper industrial e ecologicamente realizável.