Universidade Federal de Santa Catarina
INE - Departamento de Informática e Estatística
Informática Aplicada a Educação
Elenirse M. Furlanetto elenise@inf.ufsc.br
Texto: A convivencialidade
Autor: Ivan Illich
A Convivencialidade
Iniciando pelo campo da saúde e das relações criadas com o surgimento da medicina, o autor apresenta os dois estágios limiares de mutação na evolução da sociedade. Num primeiro estágio, onde a saúde vai tornando-se uma "mercadoria dentro de uma economia em desenvolvimento". O pano de fundo da sociedade sofre uma adaptação, a população aprende a sentir-se doente conforme as categorias de doenças da moda. A melhoria na qualidade de vida do povo, que muitas vezes conseqüência das transformações do habitat, das condições de higiene, regime alimentar, saneamento, etc., passa a ser considerada como mérito da profissão médica, como um monopólio dos especialistas.
A "apropriação" da saúde não pára por aí, Illich define como o marco para o segundo limiar de mutação, por volta dos anos 50, quando novos tipos de doenças são produzidos, perpetuando o domínio dos especialistas: "o tratamento médico e a investigação biológica contribuem para a proliferação de doenças" ampliando seu mercado de trabalho. Grandes investimentos são destinados aos recursos médico-hospitalares, as relações de consumo se aprofundam, as categorias de doenças (ou doentes) "interessantes" recebem atenção especial, e fica marcante a diferenciação no tratamento de doentes pobres (trabalhadores) e ricos, estes, cada vez mais protegidos enquanto aqueles destinados a sofrer com os males.
Passado o segundo limiar, os subprodutos da indústria médica afetam populações inteiras. "O mal que se causa é muito pior que o mal que se cura", medicamentos para determinados males provocam efeitos colaterias, muitas vezes, mais degradáveis aos seres humanos que a própria doença, de forma que as técnicas modernas perdem o controle sobre tais efeitos. Essa medicina "viciada" se expande por todo o planeta , que nem mesmo as tradições culturais orientais consegue resistir à dominação, num momento em que em Xangai se formava um corpo médico dito de primeira classe, os milhões de camponeses inexistiam para esse "mercado" que se voltava para o cuidado de minorias urbanas.
A crise progressivamente acelerada se consolida na substituição do trabalho humano pela máquina. E a hipótese de que "a ferramenta pode substituir o escravo se dissolve na evidência de que a ferramenta faz do homem seu escravo". Agora, solução da crise carece de uma transformação profunda na relação do homem com a ferramenta, no sentido de torná-la uma relação justa. Esta frustração da sociedade após a conquista da força motriz, que poderia libertar o homem e chegou para endurecer ainda mais o seu trabalho, pode ser explicada pelo objetivo do uso da ferramenta. No sistema vigente da época, o modo de produção capitalista - onde o capital determina as raleções socio-econômicas, culturais, políticas - o objetivo não era libertar o homem do trabalho pesado, e escravo, mas sim, estabelcer uma relação de apropriação dos meios de produção (ferramentas, máquinas, terras, etc) para uma minoria privilegiada sobre a exploração desenfreada dos que trabalhavam.
Esta crise deixa evidente que o "homem precisa de ferramentas com a qual trabalhe e não que o substitua", precisa de tecnologia para tirar o melhor proveito da sua energia e da sua capacidade criadora e não tornar-se um objeto. Illich acredita que esta transformação profunda só será possível com a reconstrução baseada numa relação convivencial. Convivencialidade é definida pelo autor como "a liberdade individual realizada dentro do processo de produção, no seio de uma sociedade equipada com ferramentas eficazes". E chama a atenção aos adeptos do socialismo: O ideal socialista só se consolidará com a inversão de instituições imperantes e com a substituição da instrumentação industrial por ferramentas convivenciais. O preço desta inversão pode ser penoso, e possivelmente, uma ameaça à sobrevivência de pessoas, porém, é provável que não ultrapasse o sofrimento da sociedade dominada pela ferramenta, dominada por uma minoria de homens, que insiste no pretexto de aliviar os males da sociedade explorando-a em seu benifício. O mais alto preço parece estar na renúncia total a superprodução, a superabundância e ao superpoder.
Illich discute como as necessidades e carências da sociedade são produzidas pelas instituições que controlam as relações sociais, apontando para a invenção da educação como uma empresa que obriga os homens a passarem por sucessivos graus de aprendizagem, que chama de "iluminação em série do saber". Um modelo de educação, que segundo Comenius "diminui o custo e aumenta o valor da educação, com o objetivo de permitir a cada qual alcançar a plenitude da humanidade", tal pelnitude que só poderia ser alcançada por alguns. O modo de produção, agora, iluminado pelo saber, com a fabricação da educação criou um sistema excludente, onde a maioria não é "digna" de atingir os mais altos graus de iluminação, ou mais altos graus de consumo, pois esse modelo parece pretender formar consumidores e não cidadãos.
Illich define ferramenta, como "todo objeto tomado como meio para se chegar a um fim", desde uma simples caneta até instituições de produção, e inclusive o homem; sendo ao mesmo tempo meio de controle e elemento transformador de energia. "A ferramenta é convivencial na medida em que cada um puder utilizá-la sem dificuldades, tão amiúde ou tão raramente quanto o desejar", é a que possibilita modificar a realidade conforme o desejo e a necessidade do homem, sem reduzir a liberdade dos outros. A ferramenta industrial nega este poder, e se contrapõe à convivencialidade, se sustenta nos valores da produtividade industrial se realiza em termos quantitativos.
Há uma perversão no uso das ferramentas de modo que o meio se transforma em fim, os caminhos tornam-se cada vez mais restritos, as ferramentas cada vez mais interdependentes e viciadas, durante trajeto do seu alcance, muitos são excluídos e poucos privilegiados. Illich propõe: o equilíbrio da sociedade convivencial está entre a instrumentação, concebida para satisfazer a produtividade e os instrumentos que estimulam a realização pessoal. Na visão do autor, "as instituições susceptíveis de intoxicar a sociedade convivencial, não necessariamente, devam ser excluídas desta, mas lapidadas para atingirem um equilíbrio". Uma percepção um tanto inocente, se verificarmos o sentido histórico das transformações sociais, o "velho" nega o "novo" e vice-versa, pois são contraditórios: a corrida pela produtividade nega a humanização, a realização pessoal; a ferramenta produtiva de capital necessita de dominadores e especialmente de muitos e muitos dominados.
Mesmo em sociedades com modos de produção adversos, mas com uma política econômica voltada para a maximização da produtividade, o grau de desenvolvimento da sociedade medido da mesma forma quantitativa, preservando as características de sociedade industrial, independentemente de ser controla pelo Estado, ou por uns e outros monopólios privados, permite que socialistas e capitalistas falem o mesmo idioma, ou seja, a solução não está na forma de apropriação dos meios de produção e sim no caráter da sua utilização.
Na história, o marco inicial do modo de produção capitalista foi a revolução industrial, no entanto, Illich enfatiza que "a ideologia da organização industrial e capitalista da economia surgiu ainda na época de Bacon, quando os europeus passaram a racionalizar uma nova tradução para termos como: tempo, espaço, energia, quantificando-os numa relação de custo/benefício". Esta mudança na mentalidade não só alterou a relação do homem com o tempo; como mudou a postura da Igreja que dantes condenava ações como empréstimos a juros, e neste contexto passou a aceitá-lo; orientou os objetivos e aplicações da ciência e da técnica. E o homem, passa a ser visto como fonte de energia mecânica, e com a sua instrumentação, novas fontes de energia foram investigadas, culminando no surgimento da máquina-a-vapor, que o autor argumenta ter sido mais um efeito da Revolução Industrial do que a sua causa.
A industrialização criou uma nova situação para o homem, determinou os carácteres técnicos da ferramenta, transformou o trabalhador em operador de máquinas ou empregado de escritório, transformou a sua força de trabalho em mercadoria, e, a exploração desenfreada por novas reservas de energia. A pesquisa está quase toda a serviço do desenvolvimento industrial, porém, o autor demonstra toda a sua expectativa de que as tecnologias avançadas podem libertar o homem do peso do labor, e criar ferramentas que possam ser empregadas na recriação e na imaginação da sociedade. Entretanto, essa decisão depende da escolha entre uma sociedade hiperindustrial e eletrônica e uma sociedade convivencial.
Assim como o clero foi despojado do monopólio da escrita, é possível desapropriar os doentes e as doenças que estão sob o poder dos médicos, e construir uma sociedade em que qualquer pessoa tenha o compromisso de cuidar de si e de seu próximo, recuperando-se o valor da solidariedade.
Numa sociedade industrial, os critérios de medida do desenvolvimento são transformados e complemente voltados para a produtividade. A necessidade de veículos mais e mais potentes e velozes, necessita de melhores rodovias e cria um círculo vicioso de mercado; os níveis de intoxicação e poluição parecem não ser um fator preocupante a essa indústria. O mesmo acontece na indústria da construção civil, da educação, da alimentação, da agricultura, e em todos os níveis em que há possibilidade de altos rendimentos. Na indústria da agricultura, para plantar e produzir criou-se a dependência de sementes híbridas e melhoradas geneticamente, além de um incontável número de insumos (agrotóxicos) com o pretexto de proteger-se de possíveis pragas, ou doenças que muitas vezes são pré-concebidas. Com a matéria-prima, alimentos e as águas já intoxicados abre-se um leque quase imensurável para o mercado da saúde, dos medicamentos, e da mesma forma para outros "nichos de mercado".
Partindo-se do pressuposto de que o equilíbrio humano é susceptível a mudanças, o que é inerente ao ciclo da vida dos seres vivos, e mais forte no caso do ser humanos, pela sua racionalidade, a dinâmica do sistema industrial, já submersa nas entranhas da sociedade, procura cravar suas raízes em cada indivíduo, determinando seu ciclo de vida, criando as necessidades que bem lhe aprouver, tornando ilimitada a industrialização dos valores.
Por certo a indústria dos valores não é composta de um cenário desconexo e elementar, pelo contrário, é um grafo fortemente conexo às inúmeras partes constituintes, em que a educação produz consumidores competitivos, a medicina se encarrega de "mantê-los vivos num ambiente instumentalizado", a burocracia induz ao corpo social o controle dos indivíduos relegados ao trabalho desumanizador, a segurança encarece o custo da defesa e torna-se um rentável negócio, e só tende a crescer com suas parcerias com a indústria da violência, pois é preciso que os homens protejam-se uns dos outros.
O autor aponta algumas ameaças que o desenvolvimento industrial trás para a população: O supercrescimento, a superprodução e a superprogramação opondo-se à permanência do homem no seu habitat; ameaçando sua autonomia de ação; o homem já não pensa ou age como ser humanizado mas como um mero consumidor, compromentendo sua criatividade, sua cultura, as relações humanas; a felicidade e o bem-estar passam a ser medidos quantitativamente conforme os critérios da industrialização.
Encontrando-se numa aprofunda inversão dos valores humano é penoso conceber a destruição deste modelo de sociedade e a construção de um novo, como prevê Illich: "eis uma revolução com uma profundiade bem diferente ao assalto do haver ou poder (...). Não se pode ancarar semelhante revolução senão depois de reconquistar uma estrutura formal de atuação". Entretanto, acredito que a formação desta estrutura a que se refere seja inviável antes da mudança do modelo, em outras palavras, não acredito que sob as regras do modo de produção capitalista monopolista possam ser feitas transformações sensíveis em benefício do povo, pois as transformações mínimas necessárias podem ameaçar a preservação do capitalismo.
Numa citação de Paul Ehrlich, que enfatiza como "única esperança da humanidade evitar sua miséria é o controle rigoroso da natalidade (controle populacional zero)". Basta levantar os olhos diante de um país periférico (ou em "desenvolvimento"), para ver que a miséria já não pode ser evitada pois é algo concreto e real. Além disso, temos o conhecimento de regiões mais desenvolvidas do planeta com sério controle de natalidade e nem por isso deixam de ter índices inaceitáveis de desemprego e exclusão de parte da população. Este argumento de Ehrlich parece ser um tanto ultrapassado, ou infundado, com uma dosagem de ingenuidade, desfocando o ponto central da origem do problema. A explosão no crescimento populacional é conseqüência de diversos fatores, alguns apresentados na primeira parte da obra: a adoção de métodos de saneamento, higiene, pelo avanço da indústria médica que atuava no "cultivo" dos seus consumidores, é resultante também de uma educação deficiente e mercadológica, da intervenção da Igreja que até hoje se opõe a métodos contraceptivos. No entanto, apesar da superpopulação do planeta a quantidade de recursos existentes é muito maior e suficiente para todos. A questão chave é que estes recursos estão concentrados nas mãos de poucos. Não podemos ignorar o fato de que a superpopulação é necessária para a manutenção de um sistema que sobrevive às custas das diferenças sociais. Neste modelo, a superpopulação é sinônimo de excesso de mão-de-obra a um custo mínimo, ou seja, o grau máximo de exploração da força de trabalho do homem sobre o homem.
O equilíbrio ecológico será uma canseqüência natural da recuperação dos valores humanos pela humanidade, que deverá compreender a sua relação e seu significado dentro do ecossistema. A natureza sempre foi a principal fonte de energia, capaz de suprir todas as necessidades no seu sentido original; a indústria é um meio de transformação da energia tirada da natureza, o que parece ser incompreensível para a sociedade industrial. Não que a indústria deva ser extinta e destruída para se iniciar uma nova fase na vida social, porém, a compreensão desta relação com a natureza torna a indústria um acessório, uma ferramenta convivencial, colocando-a em terceiro ou quarto plano, destituindo-a do papel de "progenitora" que insiste em permanecer e dominar através dos seus monopólios.
Falando sobre a interação entre homem e ambiente, Illich apresenta como duplo equilíbrio, o exercício de uma atividade criadora e a soma das suas necessidades elementares; como o terceiro ponto de equilíbrio, classifica a cegueira, no sentido em que Paulo Freire chamaria de domensticação da massa humana - o equilíbrio do saber, o que pode atestar um equilíbrio imóvel da sociedade, um equilíbrio no sentido biológico, que é o instante em que as soluções saturam-se e não há mais troca de elementos, não há mais transporte de cargas, o que caracteriza a morte celular. Ou seja, através do saber, da educação, temos indivíduos cada vez mais padronizados, mais controlados e imobilizados.
A industrialização multiplica as pessoas e as coisas. O povo em números, e as coisas bens de consumo - consumidas e apropriadas pelos "privilegiados" , a que caracteriza a diferença social imensa, cresce a fome entre os pobres e o temor entre os ricos. No ponto de vista do autor, em vista disso, o poder se polariza numa elite cada vez mais reduzida. Os dois lados desta mesma moeda: o poder industrial monopolista, que se auto-gere neste cenário, fortalecendo-se sempre mais; e o poder social e político (estreitamente ligado ao poder econômico monopolista) que permite e favorece o fortalecimento do monopólio industrial através da "legalidade" de suas regras voltadas para a retenção do poder sob seu controle.
Os controladores do poder bem sabem que sua permanência depende direta e unicamente da expoliação da sociedade, principalmente através da exploração da sua força de trabalho. Enquanto mais bens de consumo são produzidos mais a fome aumenta, parece um fato antagônico, alucinante, porém, explicável: as relações vigentes existem para proporcionar o crescimento do poder e do consumo, adversa a possibilidade do nascimento do homem novo e livre.
Como enfatiza Illich, "a distribuição do produto não é o remédio contra a polarização do controle" e tão pouco para a reconstrução de um novo tempo, porém, o considero necessário e vital, como um dos primeiros passos na transformação da vida do homem. Seres vivos esfomeados e sedentos, vivendo fora de suas condições de seres vivos ficam impossibilitados de reação, e no caso dos seres humanos ficam incapacitados de pensar, de criar e de transformar sua realidade.
A construção de um novo modelo de sociedade, justa igualitária e humana, tem como desafio a transformação comportamento humano domesticado e dominado pela produção, propiciando a descoberta, a recuperação de valores, da solidariedade, de comunidade e respeito a vida. Não há como mudar as relações do sistema industrial, não há como construir uma sociedade nova sem começar pela recuperação do indivíduo, pois o contrário seria construir algo novo com material velho, seria o caminho à ruína e à desumanização total. Talvez tenha sido este o erro das tentativas de socialismo na Europa, que não puderam sustentar-se.
Para Illich, somente a distribuição igual do poder pode permitir um igual desfrute do haver, ou seja, a democratização do poder de forma mais ampla é que poderá provocar e sustentar a distribuição da produção.
Illich diz que as hierarquias se elevam e se aglutinam, as classes inferiores lutam entre si. Como classes inferiores cita a classe das mulheres, dos jovens, dos negros, homossexuais. Analiso este critério de classificação como uma reprodução do sistema industrial (como chama Illichi, mas capitalista imperialista no seu fundamento), pois entre os negros, entre as mulheres, existem os dominadores e os dominados, e as relações se repetem. A gravidade maior disso é desviar a atenção para estes fragmentos de classes, negando o conjunto dos trabalhadores como classe que reúne a maior força, com o maior potencial de mudanças, embora adormecida, parece não reconhecer a força que tem, alienada pela história de opressão, segue, como uma manada em rumo ao matadouro, obediente no caminho traçado para sua destruição, não se reconhece como sujeito.